sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Machado de Assis: Conto:O CASO DA VARA.

O CASO DA VARA:


Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto.
Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado;
não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele
seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e
desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que
o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de
refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância
fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o
padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil. Foi ele
que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:
— Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.
— Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também
humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço...
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos
agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu
de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De
repente, exclamou:
— Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que
quer que eu saia do seminário... Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias
vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão
atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do
Capim.
— Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na
marquesa, onde estava reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar
um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a
chave nem ferrolho. Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não
deu por ele e ia andando.
— Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o
conhecera. Que vem fazer aqui?
Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia
explicar tudo.
— Descanse; e explique-se.
— Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro; mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que
estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas
fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a
fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às
pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto
que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou
com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
— Como assim? Não posso nada.
— Pode, querendo.
— Não, replicou ela abanando a cabeça; não me meto em negócios de sua família,
que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver
de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu matome,
se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros
sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe
mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não, nada, nunca!
redargüia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos; e repetia que era a
sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que
não ia ter com o padrinho.
— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda
a ninguém...
— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se
atende ou não...
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamálo,
já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e
corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.
— Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera
aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e
arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste,
encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:
— Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos.
Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como
diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro
de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele
referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a
uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o
moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçoua:
— Lucrécia, olha a vara!
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma
advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o
castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela,
um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão
esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro,
surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e
resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o
perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter
chiste.
Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para
Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar
o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes
um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a
Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os
primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo
incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.
— Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar
a seu compadre.
— Não afianço nada, não creio que seja possível...
— Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom
insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor
João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...
— Mas, minha senhora...
— Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de
forças opostas. Não lhe importava, em suma, que o rapaz acabasse clérigo,
advogado ou médico, ou outra qualquer coisa, vadio que fosse; mas o pior é que
lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre,
sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita,
cuja última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver
por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra
trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica,
mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra coisa? Por
que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá?
Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o
velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de
repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.
— Então? insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um
recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos,
extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para
casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era
encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os
seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos,
esperando, sem solução apoplética.
— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu
à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos
fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
— Ande jantar, deixe-se de melancolias.
— A senhora crê que ele alcance alguma coisa?
— Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está
esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita e do seu próprio espírito leve, Damião
esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter
mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da
manhã. À sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham
prender.
— Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as
tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita
presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o
palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim,
que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros
minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento, mas passou
depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá
Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião
que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir
Lucrécia.
— Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora.
Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação,
que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das
moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se
rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não
ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo
tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia
espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho.
Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um
pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a
Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que
podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da
Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O
pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma
sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança
ou esquecimento de João Carneiro.
— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com
esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para
Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis
quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário,
ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para
conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse
bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava
na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha; mas
no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o
moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de
salvação, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha
da própria carta escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou
nunca mais nos vemos". Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que
a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no
capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele
negócio era agora dela.
— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulas
tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os
bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava
acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.
— Ah! malandra!
— Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.
— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a
senhora foi atrás e agarrou-a.
— Anda cá!
— Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha.
— Não perdôo, não. Onde está a vara?
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e
pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
— Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não
querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista.
— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha
jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...
— Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então
por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...
— Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem
largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se
compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa,
pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.